quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Artigo Lya Luft


Legado aos nossos filhos

(...) "O que nos enche de perplexidade, quando o assunto é filhos, é a parte de tudo isso que não conseguimos controlar(...) Se há 100 anos a vida era mais previsível - o pai mandava e o resto da família obedecia, o professor e o médico tinham autoridade absoluta, os governantes eram nossos heróis, e havia trilhas fixas a ser seguidas ou seríamos considerados desviados - , hoje ser diferente pode dar status.
Gosto de pensar na perplexidade quanto ao legado que podemos deixar no que depende de nós. Que não é nem aquele legado alardeado por nossos pais - e educação e o preparo - nem é o valor em dinheiro ou bens, que se evaporam ao primeiro vendaval nas finanças ou na política. A mim me interessan outros bens, outros valores, os valores morais. O termo "morais" faz arquear sobrancelhas, cheira a religiosidade ou a moralismo e a preconceito de fariseu. Mas não é disso que falo: moralidade não é moralismo, e moral todos temos de ter. A gente gosta de dizer que está dando valores aos filhos. Pergunto: que valores? Morais, ora, decência, ética, trabalho, justiça social, por exemplo. É ótimo passar aos filhos o senso de alguma justiça social, mas então a gente indaga: você paga a sua empregada o mínimo que a lei exige ou o máximo que você pode? Penso que a maioria de nós responderia não à segunda parte da pergunta então, acaba já toda a conversa sobre justiça social, pois tudo ainda começa em casa e bem antes da escola.
Não adianta falar em ética, se vasculho bolsos e gavetas de meus filhos, se escuto atrás da porta ou na extensão do telefone - a não ser que a ameaça das drogas justifique essa atitude. Não adianta falar de justiça, se trato miseravelmente meus fucionários. Não se pode falar em decência, se pulamos a cerca deslavadamente, quem sabe até nos fanfarronando diante dos filhos homens: ah, o velho aqui ainda pode! Nem se deve pensar em respeito, se desrespeitamos quem nos rodeia, e isso vai dos empregados ao parceiro ou parceira, passando pelos filhos, é claro. Se sou tirana, egoísta, bruta; se sou tola, fútil, metida a gatinha manhosa, se vivo acima das minhas possibilidades e ensino isso aos meus filhos, o efeito sobre a moral deles e sua visão da vida vai ser um desastre.
Temos então de ser modelos? Suprema chatice. Não, não temos de ser modelos: nós somos aquele primeiro modelo que crianças recebem e assimilam, e isso passa pelo ar, pelos poros, pelas palavras, silêncios e posturas. Gosto da historinha verdadeira de quando, esperando alguém no aeroporto, vi ao meu lado uma jovem mãe, com sua filhinha de uns 5 anos, lindas e alegres. De repente, olhando para as pessoas que chegavam atrás dos grandes vidros, a perfumada mãe disse à pequena: "Olha ali o boca aberta do seu pai".
Nessa frase, que ela jamais imaginaria repetida em um artigo de revista ou em palestras pelo pais, a moça definia seu ambiente familiar. Assim se definem ambientes na escola, no trabalho, nos governos, no mundo. Em casa, para começar. O palavrório sobre o que legaremos aos nossos filhos será vazio se nossas atitudes forem egoístas, burras, grosseiras ou maliciosas. O resto é conversa fiada para qual, neste tempo de graves assuntos, não temos tempo." (Revista Veja edição 2082 - 15 de outubro de 2008)

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